domingo, 25 de outubro de 2009

Konrad Lorenz, humano e criador da Etologia.


(…) O meu pequeno ganso cinzento viera então ao mundo e contava que se fizesse bastante forte sob a protecção da sua almofada térmica que iria substituir o ventre quente da mãe, a fim de conseguir erguer a cabeça e dar os primeiros passos.
De cabeça inclinada, levantou para mim um grande olho escuro, um só, pois como a maior parte das aves, o ganso cinzento só fixa um olho quando quer ver com precisão. A avezinha olhou-me muito, muito tempo. E como fiz um gesto acompanhado de uma breve palavra, deixou a sua atitude de expectativa e saudou-me: o pescoço estendido e a nuca direita, soltou rapidamente e em diversas sílabas aquele som que, nos gansos cinzentos, corresponde a uma tomada de contacto e que, em todos os filhotes, se assemelha a um pipilar leve e cheio de entusiasmo. (….) Eu ignorava ainda as pesadas obrigações que assumia ao ser objecto da atenção daquele olho escuro. (…)
Tencionava confiar a um ganso fêmea doméstico, após o nascimento, todos os [outros] gansinhos [previamente] chocados pela perua (…) Quando o meu ficou ‘pronto’, levei o meu bebé até ao jardim onde o ganso fêmea branco estava instalado na casota do cão, cujo ocupante legítimo expulsara sem qualquer pejo. Enfiei o meu bebé dentro do ventre macio e quente do ganso, convencido de haver cumprido a minha obrigação. Mas tinha ainda muito que aprender.
Decorreram alguns minutos [passados] em amena meditação sentado diante do ninho das aves; depois, vindo debaixo das penas do grande ganso branco, chegou-me um ligeiro pipilar que mais parecia uma interrogação: vivivivivi? O velho ganso respondeu em tom tranquilizador: gangangangang. No entanto, em vez de se apaziguar, como teria sucedido a qualquer ganso bebé razoável, o meu deslizou para fora da quente plumagem protectora, ergueu um olho em direcção ao rosto da sua mãe adoptiva e afastou-se dela a correr e a chorar bem alto: pfuhp… pfuhp… pfuhp… Assemelhava-se ao «chamamento de abandono» dos pequenos gansos que é vulgar, sob uma ou outra forma, em todos os pequenitos que fogem do ninho.
Erguendo-se em todo o seu tamanho, chamando alto e ininterruptamente, o pobre bebé encontrava-se a meio caminho entre mim e o ganso fêmea que o chocara. Esbocei então um pequeno gesto, a sua choradeira parou bruscamente e veio até mim, o pescoço grande estendido para a frente, saudando com fervor: vivivivivi… Certo que era comovente, mas não tencionava desempenhar o papel de mãe ganso. Peguei então no bebé, voltei a colocá-lo debaixo da mãe adoptiva e fui-me embora. Ainda não dera dez passos quando oiço atrás de mim pfuhp… pfuhp… pfuhp… e o pobrezinho correu desesperadamente. Agachou-se, pois ainda mal se aguentava de pé; ao caminhar devagar, cambaleou, mas encontrara na premente necessidade os movimentos da corrida precipitada. (…)
Até um coração de pedra se teria partido ao ver o pobrezinho a correr atrás de mim a chorar com a sua vozinha de falsete, tropeçando e caindo, mas com uma rapidez extraordinária e uma determinação cuja intenção não era possível ignorar: era eu, e não o ganso doméstico branco, a sua mãe! Suspirando, levei para casa a minha pequena cruz. Apesar de não ter mais de 100 gramas, sabia perfeitamente o fardo que representava, quanto me ia custar em esforços e tempo para o tratar dignamente.
Procedi como se tivesse adoptado a bebé e não como se fosse ela a adoptar-me. Baptizámo-la solenemente de Martina.
Levei o resto do dia a fazer de mãe-ganso. Fomos pastar erva tenra na pradaria, e consegui convencer a minha ‘filha’ de que um picado de ovo e urtigas era um pitéu muito saboroso. E, por sua vez, a ‘filha’ conseguiu convencer-me de que estava fora de questão (…) afastar-me dela e deixá-la sozinha, por um minuto que fosse. Na verdade, perdia-se num terror tão desesperado e chorava de forma tão pungente que, ao cabo de algumas tentativas, acabei por ceder e construí um cestinho onde a podia transportar para onde quer que fosse. Os meus movimentos só eram plenamente livros quando a bebé dormia.
Nunca dormia muito tempo de seguida, o que não me afectou particularmente no primeiro dia. Mas à noite!…. Instalara o meu ganso bebé num magnífico berço aquecido electricamente que substituíra já o seio materno de muitos pequenitos saídos do ninho. Quando, bastante ao fim da noite, introduzi a pequena Martina debaixo da almofada eléctrica quente e macia, logo emitiu com alegria o murmúrio muito rápido que, nos gansos jovens, exprime a disposição do sono e se assemelha a um virrrrrr. Coloquei a caixa que mantinha o berço aquecido num canto do quarto e meti-me também na cama. Estava prestes a adormecer quando oiço Martina dizer em voz baixa e ensonada: Virrrrrrr. Nem me mexi. Chegou-me então, um pouco mais alto e como que a interrogar, o som da tomada de contacto vivivivivi? Selma Lagerlöf, cujo maravilhoso livro sobre o pequeno Nils Holgersson tanto me influenciou na infância, captou com genial intuição o sentido deste chamamento ao traduzi-lo por: ‘Estou aqui, e tu, onde estás?’. Vivivivivi?: estou aqui, e tu, onde estás?
Continuei sem responder, embrenhei-me mais debaixo da roupa e desejei ardentemente que a bebé voltasse a adormecer. Infelizmente, não. Vivivivi, mas desta vez com o acompanhamento ameaçador do chamamento de abandono: estou aqui, e tu, onde estás? (…) E, no instante seguinte, lá estava: nítido e penetrante, soou o pfuhp… pfuhp… Tive de me levantar e aproximar da caixa. Martina recebeu-me com alegria e bastantes saudações: um nunca acabar de vivivivivivi, tão contente estava de já não se encontrar sozinha no escuro. Meti-a suavemente debaixo da almofada quente: virrrrrr, virrrrrr, e adormeceu logo, como eu contava. Fiz o mesmo.
Mas ainda não passara uma hora, ouviu-se novamente o vivivivivi inquiridor e repetiu-se exactamente a história que acabei de contar. Depois, outra vez a um quarto para a meia-noite. E de novo à uma hora. Às três menos um quarto, resolvi bruscamente mudar de táctica. Peguei no berço e coloquei-o ao alcance da minha mão, à cabeceira da cama. Quando às 3 horas e 30 minutos se ouviu a interrogação esperada: ‘Eu estou aqui, e tu, onde estás?’, respondi em linguagem de ganso cinzento um pouco macarrónica: Gangangangang, e bati ao de leve na almofada quente. Virrrrr, disse Martina, ‘vou dormir, boa noite.’ Em breve aprendi a dizer Gangangangang sem acordar. Creio que ainda hoje responderia assim no sono mais profundo se alguém dissesse baixinho ao pé de mim: vivivivivi? (…)