segunda-feira, 22 de julho de 2013

Em seis meses de legalização, Uruguai não registra mortes de mulheres que abortaram


Foram realizados 2.550 abortos legais, aproximadamente 426 por mês. O Uruguai é um dos países com taxas de aborto mais baixas do mundo
19/07/2013

do Sul21

O subsecretário do Ministério da Saúde Pública do Uruguai, Leonel Briozzo, apresentou nesta semana os dados oficiais sobre interrupções voluntárias de gravidez dos primeiros seis meses desde a sua legalização no país. Entre dezembro de 2012 e maio de 2013, não foi registrada a morte de nenhuma mulher que abortou de forma regulamentada no Uruguai.
Foram realizados 2.550 abortos legais, aproximadamente 426 por mês. O Uruguai é um dos países com taxas de aborto mais baixas do mundo. Briozzo explicou que desde o novo marco legal para o aborto, o país os pratica de forma segura, com a consolidação de serviços de saúde para este fim.
A política pública do governo tem o objetivo de diminuir a prática de abortos voluntários a partir da descriminalização, da educação sexual e reprodutiva, do planejamento familiar e uso de métodos anticoncepcionais, assim como serviços de atendimento integral de saúde sexual e reprodutiva.
Segundo esses dados, o Ministério da Saúde Pública atesta que 10 em cada mil mulheres entre 15 e 44 anos abortam no Uruguai atualmente. Esses números situam o país entre um dos que têm menores indicadores, ao lado dos estados da Europa Ocidental.

Fonte: Brasil de Fato.

Daleste e seus algozes

Se o Estado não tem moral na periferia, evidentemente que isso não é fruto de letras ofensivas feitas por jovens entusiastas do crime, e sim, entre tantas coisas, resultado da terrível qualidade dos serviços públicos oferecidos à parcela pauperizada da sociedade – serviços estes que incluem, por sua vez, a truculência policial
16/07/2013

Por Christian Gilioti*

Para além de meros indivíduos, existem homens e mulheres que conseguem fazer de suas vidas a expressão livre, fiel e radical de poderosas ideias – ou ideais. Mas o contrário também é verdade: não são raros os casos em que ideias dotadas de alguma força tomam de assalto pessoas fazendo delas seres menores, reféns de motivos absolutamente exteriores, reduzindo-as praticamente à condição de marionetes.
Os primeiros são muito poucos; os segundos, a grande maioria. E é no mínimo intrigante reconhecer que a trajetória do menino Daniel Pellegrine – mais conhecido como MC Daleste – parece combinar simultaneamente os dois fenômenos.
Daleste foi covardemente assassinado no dia 6 de julho, desfecho de uma vida bastante jovem e que merecia seguir em frente – ele tinha apenas 20 anos de idade. Repleto de mistérios, impactante sobretudo pela circunstância insólita em que ocorreu (morreu em cima do palco durante show que realizava em quermesse no CDHU do bairro San Martin, periferia de Campinas), o assassinato virou espetáculo no youtube e nos programas mais sórdidos do jornalismo nacional de perfil sensacionalista.
Não demorou muito para o esgoto reacionário e protofascista transbordar pelas bocas dos analfabetos políticos; centenas de comentários se alastraram na internet comemorando a morte do funkeiro, boa parte, aliás, impulsionados pela cobertura da grande mídia que fez questão de associar a produção artística do garoto ao “funk proibidão” – sem dúvida, o ramo mais estigmatizado de um gênero musical contraditoriamente cultuado por parte considerável da juventude brasileira e, ao mesmo tempo, rechaçado por diferentes setores e camadas sociais.
Para quem não conhece muito de funk, o “proibidão” (também chamado de “neuroticão” ou “da apologia”) é um estilo mais agressivo cujas letras celebram o modo de vida daqueles que atuam no crime organizado (PCC, Comando Vermelho e etc.). Uma leitura chapada encontra ali apenas o elogio de práticas criminosas e brutais em geral descritas com naturalidade, como se não passassem de aventuras infanto-juvenis, exaltando a figura do bandido. Este último, personagem central, é idolatrado graças a um determinado ‘poder’ que ele próprio possui e faz questão de ostentar.
Diferente dos comuns, sua superioridade seria por assim dizer garantida a partir de um privilégio: a capacidade de exercer violência contra as forças policiais, as classes dominantes e os grupos inimigos. Partindo daí, não são poucos os que reconhecem o “proibidão” como um tipo de música execrável que incentiva o ingresso dos adolescentes no chamado “mundo do crime” e banaliza formas violentas de convívio, além de promover a desmoralização da polícia e, por tabela, também do Estado.
Mas embora tudo isso não deixe de parecer verdade, trata-se tão somente de uma verdade superficial, ou melhor: uma ilusão compartilhada. Não podemos imputar ao funk o que é produto da experiência social mais ampla. Os “soldados do crime” crescem em número principalmente pela absoluta ausência de perspectiva no que diz respeito às possibilidades reais de sucesso material pela via do trabalho dito “honesto”. Além disso, eles geralmente nascem em regiões periféricas que, como se sabe, apresentam precariedade na oferta de saneamento, saúde, educação, moradia, lazer e etc.
A própria dificuldade – territorial e monetária – de locomoção, por exemplo, torna o direito à cidade (sobretudo o acesso às regiões centrais e os produtos que dispõem) uma espécie de valor utópico para os sujeitos periféricos e, com isso, uma gama considerável de distorções aparecem no imaginário.
Não pretendemos aqui defender ou mesmo justificar a prática de sequestros, latrocínios e etc. A questão no limite é outra: muito antes da ação perversa e sanguinária dos chamados bandidos, a banalização da violência não encontraria já na arquitetura das favelas sua concretização mais explícita e representativa? Como é possível formas de habitação que produzem o empilhamento de seres humanos se tornarem, nos últimos anos, verdadeiros pontos de turismo cujo passeio é previamente comercializado nas agências de viagem? Nunca é demais relembrar que o pacote é vendido com direito a guia turístico e, em algumas ocasiões, souvenir sexual para fidelizar o cliente.
Em todo caso, se o Estado não tem moral na periferia, evidentemente que isso não é fruto de letras ofensivas feitas por jovens entusiastas do crime, e sim, entre tantas coisas, resultado da terrível qualidade dos serviços públicos oferecidos à parcela pauperizada da sociedade – serviços estes que incluem, por sua vez, a truculência policial.
Daleste era um artista de origem genuinamente popular. Foi nas quebradas da Penha (bairro periférico da zona leste de São Paulo) que o funkeiro nasceu. Iniciou sua carreira de MC aos 16 anos cantando suas composições em bailes e shows modestíssimos, sempre nas periferias. Justamente nesta fase é que surgem os “proibidões” mais contundentes, quando as letras são quase que inteiramente preenchidas por nomes, marcas e tipologias de revólveres, pistolas, fuzis, granadas e etc.
No entanto, o aspecto que mais chama a atenção é a recorrência das expressões ‘guerrilheiro’ e ‘terrorista’. O interessante é que muito embora utilizadas como sinônimos, na contramão do senso comum elas não apresentam sentido pejorativo; na verdade servem de elogio e tornam a figura do criminoso uma espécie de emblema superior e portador de valores nobres, um outsider que não tem nada de pacífico e que se encontra profundamente comprometido com a sobrevivência e a vitória na ‘guerra’ – outra expressão recorrente.
No imaginário sedimentado pela poesia dos funkeiros chapa-quente, o crime, mais do que produto de ressentimento, sintoma de perversidade ou projeto de fancaria, é na verdade um estilo de vida combativo à ordem violenta e opressiva que submete os de baixo. Isso tudo, vale dizer, apenas na perspectiva da poesia do imaginário chapa-quente.
Assim, o banditismo conformaria simbolicamente um exército de ‘heróis da favela’, aqueles que, segundo a canção de Daleste, enfrentam o risco de terminarem confinados nos presídios ou mesmo mortos em nome de uma causa maior: a vida no crime como gesto de poder.
Mas além do suposto entusiasmo pelo crime organizado, uma segunda face do funkeiro também vem sendo exaustivamente explorada pela grande mídia: a aparente esbórnia com que Daleste vivia, sem grandes pudores, ao desfilar pelos becos e vielas da zona leste com seu Porsche Cayenne, vidro abaixado, Rolex no pulso e anéis e pulseiras de ouro todos à mostra.
O estereótipo de ‘bon vivant’ respeitado na quebrada, a bem da verdade, foi conscientemente incorporado pelo jovem. Nos últimos anos ele abandonou um pouco a “apologia” partindo para outro ramo, o chamado “funk ostentação” que, se por um lado, permanece celebrando o ‘poder’ entre os favelados, por outro desloca o empoderamento das armas e do crime para as roupas, os carros, as bebidas e as mulheres, todos caríssimos – e que, na condição de “produtos de poder”, obrigatoriamente se mostram réplicas ou exemplares autênticos daquilo que normalmente é valorizado e consumido pela alta burguesia.
Entre muitos outros, há basicamente três importantes problemas perceptíveis a partir da construção de identidades apoiadas fortemente na “ostentação” de bens de consumo: 1) a interiorização da perspectiva típica das classes dominantes por parte das camadas dominadas, que passam a partilhar um ideário que, no fundo, é estrategicamente favorável e plenamente instituído somente entre os dominadores; 2) através do exibicionismo consumista de alguns sujeitos periféricos, a crença infundada de que a pobreza não apresenta raízes históricas objetivas que se formam a partir das interações sociais ganha força, assim como a noção de que o empenho individual é a verdadeira balança do sucesso material (inclusive entre os que originalmente se encontram em situação de pobreza); 3) o amor incondicional aos produtos de luxo submete toda e qualquer experiência humana aos feitiços da mercadoria, que imperam como realização absoluta de tudo o que aparentemente merece ser vivido ou possui valor de verdade.
É claro que a abordagem midiática passa a quilômetros de distância disso. Na melhor das hipóteses o que será ressaltado é o esforço dos artistas, que chegam a fazer cinco shows numa única noite e, portanto, merecem usufruir da riqueza que dispõem. Todavia, é precisamente essa maneira de enquadrar a questão que acaba dando brecha para que tipos deploráveis da sociedade brasileira, sobretudo de classe média, intensifiquem ainda mais o ódio que sentem pela população das periferias, geralmente miscigenada e descendente de africanos escravizados ou, mais recentemente, de trabalhadores que vieram das regiões norte e nordeste do país. Ao toparem com os funkeiros “na telinha”, pensam consigo mesmos: “Como pode um animal desses ter um carro de luxo lotado de gostosas enquanto eu, que trabalho há vinte anos” etc., etc. e etc...
Ocorre que a arte de Daleste extrapola os regimes da “ostentação” e da “apologia”. Ele também produziu funks “românticos”, orientados pela expectativa de realização ideal do amor verdadeiro, bem como funks de “consciência”, cuja sobriedade da letra somada à visão crítica em relação às dificuldades que o mundo impõe aos pretos e pobres da periferia apresenta forte afinidade com o rap. Mas com diferenças significativas.
Na obra dos Racionais o alto valor estético se sustenta pela elaboração estilística sólida, fruto do acúmulo de politização e também de repertório cultural, ambos adquiridos ao longo de duas décadas. Já a música do jovem funkeiro apresenta certa simplicidade técnica e artística (característica essa um tanto quanto comum ao funk em geral), as composições funcionam através de rimas simples e motivos comuns. No entanto, elas não perdem a dimensão lírica da existência humana, e sustentam em certa medida algo de dramático que tem parte com a experiência social.
Essa dualidade se cristaliza com especial vigor, por exemplo, no timbre de voz de Daleste. Meio infantil, meio efeminado e fortemente adocicado, ele corresponde ao gosto de mercado característico do pop em geral; todavia, há elementos mais complexos como certos exageros vocais que deixam transparecer em desafino o esforço empreendido, ou mesmo a velocidade e a destreza na dicção.
Esse jogo entre o que parece lúdico e pueril e, ao mesmo tempo, laborioso e produtor de sofrimento, lança alguma luz sobre o complexo em questão: Daleste conseguia, a seu modo, ser um produto que não deixava de revelar a dor da produtividade, e isso de uma maneira bastante peculiar e sutil. Sua voz, perfeitamente adequada ao gosto da massa, permanecia imperfeitamente relutante à ideia de perfeição. É como se o artista fosse o catalisador de materiais e elementos que percorrem a indústria cultural sem, contudo, sucumbir inteiramente aos seus domínios.
Outra cristalização nítida desse jogo de contrários é o desarranjo produzido pelos contrastes gritantes entre a pobreza e a riqueza que, à revelia da vontade pessoal, conviviam sempre juntas. O rapaz vivia pelas quebradas mesmo depois da fama, fazia jus ao apelido que carregava (Daleste surgiu como ênfase do lugar de origem, isto é, “da zona leste”), e nos diversos vídeos espalhados pelo youtube não há como desconsiderar o estranhamento e a faísca que o luxo e a precariedade, em constante interação visual, são capazes de produzir.
A variedade de estilos que explorou, em consonância à complexidade de sua própria personalidade, faz de Daleste uma espécie de condensação de tipos sociais profundamente representativos das periferias dos grandes centros urbanos.
No filme Bróder (Jeferson De, 2010), a título de exemplo, havia três grandes amigos representantes dos caminhos que se oferecem aos jovens pobres da cidade grande: Macu (Caio Blat) interpretava um jovem ligado ao crime; Jaiminho (Jonathan Haagensen) era o jogador de futebol, ídolo na comunidade e símbolo da ascensão social; enquanto Pibe (Sílvio Guindane) representava o trabalhador comum, homem de família, conformado às regras sociais e aos limites colocados pelo destino.
Os três formavam assim o elo de um universo fechado em diferentes níveis. E eles podem claramente servir para compreendermos Daleste que, em quatro anos de carreira, conseguiu ser um pouco de cada uma dessas personagens sem deixar de ser ele próprio.
É verdade, porém, que todo seu talento e fama tornaram-se irrelevantes à objetividade específica dos cálculos estatísticos que computam, na última década, o crescimento incisivo do número de jovens negros vítimas de homicídio no Brasil. Sua morte figura apenas como mais uma entre as inúmeras tragédias que se repetem diariamente em nosso país.
E independente se foi crime passional, cobrança de dívida, rivalidade ou ação de grupos de extermínio, o fato mesmo é que o menino não mais voltará a pisar nos palcos para encantar o povo pobre da periferia. Embora agindo por algum tempo como anfitrião, o ‘mundo cão’ parece mesmo ter conspirado contra Daleste.
* Christian Gilioti é professor de filosofia no ensino médio e mestrando em filosofia na FFLCH-USP. Pesquisa as formas artísticas de parte do cinema nacional da última década e suas imbricações com a cultura e a política contemporâneas.

Fonte: Brasil de Fato.