Se o Estado não tem moral na periferia, evidentemente que isso não é
fruto de letras ofensivas feitas por jovens entusiastas do crime, e sim,
entre tantas coisas, resultado da terrível qualidade dos serviços
públicos oferecidos à parcela pauperizada da sociedade – serviços estes
que incluem, por sua vez, a truculência policial
16/07/2013
Por Christian Gilioti*
Para
além de meros indivíduos, existem homens e mulheres que conseguem fazer
de suas vidas a expressão livre, fiel e radical de poderosas ideias –
ou ideais. Mas o contrário também é verdade: não são raros os casos em
que ideias dotadas de alguma força tomam de assalto pessoas fazendo
delas seres menores, reféns de motivos absolutamente exteriores,
reduzindo-as praticamente à condição de marionetes.
Os primeiros
são muito poucos; os segundos, a grande maioria. E é no mínimo
intrigante reconhecer que a trajetória do menino Daniel Pellegrine –
mais conhecido como MC Daleste – parece combinar simultaneamente os dois
fenômenos.
Daleste foi covardemente assassinado no dia 6 de
julho, desfecho de uma vida bastante jovem e que merecia seguir em
frente – ele tinha apenas 20 anos de idade. Repleto de mistérios,
impactante sobretudo pela circunstância insólita em que ocorreu (morreu
em cima do palco durante
show que realizava em quermesse no CDHU do bairro San Martin, periferia de Campinas), o assassinato virou espetáculo no
youtube e nos programas mais sórdidos do jornalismo nacional de perfil sensacionalista.
Não
demorou muito para o esgoto reacionário e protofascista transbordar
pelas bocas dos analfabetos políticos; centenas de comentários se
alastraram na
internet comemorando a morte do funkeiro, boa
parte, aliás, impulsionados pela cobertura da grande mídia que fez
questão de associar a produção artística do garoto ao “funk proibidão” –
sem dúvida, o ramo mais estigmatizado de um gênero musical
contraditoriamente cultuado por parte considerável da juventude
brasileira e, ao mesmo tempo, rechaçado por diferentes setores e camadas
sociais.
Para quem não conhece muito de funk, o “proibidão”
(também chamado de “neuroticão” ou “da apologia”) é um estilo mais
agressivo cujas letras celebram o modo de vida daqueles que atuam no
crime organizado (PCC, Comando Vermelho e etc.). Uma leitura chapada
encontra ali apenas o elogio de práticas criminosas e brutais em geral
descritas com naturalidade, como se não passassem de aventuras
infanto-juvenis, exaltando a figura do bandido. Este último, personagem
central, é idolatrado graças a um determinado ‘poder’ que ele próprio
possui e faz questão de ostentar.
Diferente dos comuns, sua superioridade seria por assim dizer garantida a partir de um privilégio: a capacidade de
exercer violência
contra as forças policiais, as classes dominantes e os grupos inimigos.
Partindo daí, não são poucos os que reconhecem o “proibidão” como um
tipo de música execrável que incentiva o ingresso dos adolescentes no
chamado “mundo do crime” e banaliza formas violentas de convívio, além
de promover a desmoralização da polícia e, por tabela, também do Estado.
Mas
embora tudo isso não deixe de parecer verdade, trata-se tão somente de
uma verdade superficial, ou melhor: uma ilusão compartilhada. Não
podemos imputar ao funk o que é produto da experiência social mais
ampla. Os “soldados do crime” crescem em número principalmente pela
absoluta ausência de perspectiva no que diz respeito às possibilidades
reais de sucesso material pela via do trabalho dito “honesto”. Além
disso, eles geralmente nascem em regiões periféricas que, como se sabe,
apresentam precariedade na oferta de saneamento, saúde, educação,
moradia, lazer e etc.
A própria dificuldade – territorial e monetária – de locomoção, por exemplo, torna o
direito à cidade
(sobretudo o acesso às regiões centrais e os produtos que dispõem) uma
espécie de valor utópico para os sujeitos periféricos e, com isso, uma
gama considerável de distorções aparecem no imaginário.
Não
pretendemos aqui defender ou mesmo justificar a prática de sequestros,
latrocínios e etc. A questão no limite é outra: muito antes da ação
perversa e sanguinária dos chamados bandidos, a banalização da violência
não encontraria já na arquitetura das favelas sua concretização mais
explícita e representativa? Como é possível formas de habitação que
produzem o empilhamento de seres humanos se tornarem, nos últimos anos,
verdadeiros pontos de turismo cujo passeio é previamente comercializado
nas agências de viagem? Nunca é demais relembrar que o pacote é vendido
com direito a guia turístico e, em algumas ocasiões,
souvenir sexual para fidelizar o cliente.
Em
todo caso, se o Estado não tem moral na periferia, evidentemente que
isso não é fruto de letras ofensivas feitas por jovens entusiastas do
crime, e sim, entre tantas coisas, resultado da terrível qualidade dos
serviços públicos oferecidos à parcela pauperizada da sociedade –
serviços estes que incluem, por sua vez, a truculência policial.
Daleste
era um artista de origem genuinamente popular. Foi nas quebradas da
Penha (bairro periférico da zona leste de São Paulo) que o funkeiro
nasceu. Iniciou sua carreira de MC aos 16 anos cantando suas composições
em bailes e
shows modestíssimos, sempre nas periferias.
Justamente nesta fase é que surgem os “proibidões” mais contundentes,
quando as letras são quase que inteiramente preenchidas por nomes,
marcas e tipologias de revólveres, pistolas, fuzis, granadas e etc.
No
entanto, o aspecto que mais chama a atenção é a recorrência das
expressões ‘guerrilheiro’ e ‘terrorista’. O interessante é que muito
embora utilizadas como sinônimos, na contramão do senso comum elas não
apresentam sentido pejorativo; na verdade servem de elogio e tornam a
figura do criminoso uma espécie de emblema superior e portador de
valores nobres, um
outsider que não tem nada de pacífico e que
se encontra profundamente comprometido com a sobrevivência e a vitória
na ‘guerra’ – outra expressão recorrente.
No imaginário
sedimentado pela poesia dos funkeiros chapa-quente, o crime, mais do que
produto de ressentimento, sintoma de perversidade ou projeto de
fancaria, é na verdade um
estilo de vida combativo à ordem
violenta e opressiva que submete os de baixo. Isso tudo, vale dizer,
apenas na perspectiva da poesia do imaginário chapa-quente.
Assim,
o banditismo conformaria simbolicamente um exército de ‘heróis da
favela’, aqueles que, segundo a canção de Daleste, enfrentam o risco de
terminarem confinados nos presídios ou mesmo mortos em nome de uma causa
maior: a vida no crime como
gesto de poder.
Mas além do
suposto entusiasmo pelo crime organizado, uma segunda face do funkeiro
também vem sendo exaustivamente explorada pela grande mídia: a aparente
esbórnia com que Daleste vivia, sem grandes pudores, ao desfilar pelos
becos e vielas da zona leste com seu
Porsche Cayenne, vidro abaixado,
Rolex no pulso e anéis e pulseiras de ouro todos à mostra.
O estereótipo de ‘
bon vivant’
respeitado na quebrada, a bem da verdade, foi conscientemente
incorporado pelo jovem. Nos últimos anos ele abandonou um pouco a
“apologia” partindo para outro ramo, o chamado “funk ostentação” que, se
por um lado, permanece celebrando o ‘poder’ entre os favelados, por
outro desloca o empoderamento das armas e do crime para as roupas, os
carros, as bebidas e as mulheres, todos caríssimos – e que, na condição
de “produtos de poder”, obrigatoriamente se mostram réplicas ou
exemplares autênticos daquilo que normalmente é valorizado e consumido
pela alta burguesia.
Entre muitos outros, há basicamente três
importantes problemas perceptíveis a partir da construção de identidades
apoiadas fortemente na “ostentação” de bens de consumo: 1) a
interiorização da perspectiva típica das classes dominantes por parte
das camadas dominadas, que passam a partilhar um ideário que, no fundo, é
estrategicamente favorável e plenamente instituído somente entre os
dominadores; 2) através do exibicionismo consumista de alguns sujeitos
periféricos, a crença infundada de que a pobreza não apresenta raízes
históricas objetivas que se formam a partir das interações sociais ganha
força, assim como a noção de que o empenho individual é a verdadeira
balança do sucesso material (inclusive entre os que originalmente se
encontram em situação de pobreza); 3) o amor incondicional aos produtos
de luxo submete toda e qualquer experiência humana aos feitiços da
mercadoria, que imperam como realização absoluta de tudo o que
aparentemente merece ser vivido ou possui valor de verdade.
É
claro que a abordagem midiática passa a quilômetros de distância disso.
Na melhor das hipóteses o que será ressaltado é o esforço dos artistas,
que chegam a fazer cinco
shows numa única noite e, portanto,
merecem usufruir da riqueza que dispõem. Todavia, é precisamente essa
maneira de enquadrar a questão que acaba dando brecha para que tipos
deploráveis da sociedade brasileira, sobretudo de classe média,
intensifiquem ainda mais o ódio que sentem pela população das
periferias, geralmente miscigenada e descendente de africanos
escravizados ou, mais recentemente, de trabalhadores que vieram das
regiões norte e nordeste do país. Ao toparem com os funkeiros “na
telinha”, pensam consigo mesmos: “Como pode um animal desses ter um
carro de luxo lotado de gostosas enquanto eu, que trabalho há vinte
anos” etc., etc. e etc...
Ocorre que a arte de Daleste
extrapola os regimes da “ostentação” e da “apologia”. Ele também
produziu funks “românticos”, orientados pela expectativa de realização
ideal do amor verdadeiro, bem como funks de “consciência”, cuja
sobriedade da letra somada à visão crítica em relação às dificuldades
que o mundo impõe aos pretos e pobres da periferia apresenta forte
afinidade com o rap. Mas com diferenças significativas.
Na obra
dos Racionais o alto valor estético se sustenta pela elaboração
estilística sólida, fruto do acúmulo de politização e também de
repertório cultural, ambos adquiridos ao longo de duas décadas. Já a
música do jovem funkeiro apresenta certa simplicidade técnica e
artística (característica essa um tanto quanto comum ao funk em geral),
as composições funcionam através de rimas simples e motivos comuns. No
entanto, elas não perdem a dimensão lírica da existência humana, e
sustentam em certa medida algo de dramático que tem parte com a
experiência social.
Essa dualidade se cristaliza com especial
vigor, por exemplo, no timbre de voz de Daleste. Meio infantil, meio
efeminado e fortemente adocicado, ele corresponde ao gosto de mercado
característico do
pop em geral; todavia, há elementos mais
complexos como certos exageros vocais que deixam transparecer em
desafino o esforço empreendido, ou mesmo a velocidade e a destreza na
dicção.
Esse jogo entre o que parece lúdico e pueril e, ao mesmo
tempo, laborioso e produtor de sofrimento, lança alguma luz sobre o
complexo em questão: Daleste conseguia, a seu modo, ser um produto que
não deixava de revelar a dor da produtividade, e isso de uma maneira
bastante peculiar e sutil. Sua voz, perfeitamente adequada ao gosto da
massa, permanecia imperfeitamente relutante à ideia de perfeição. É como
se o artista fosse o catalisador de materiais e elementos que percorrem
a indústria cultural sem, contudo, sucumbir inteiramente aos seus
domínios.
Outra cristalização nítida desse jogo de contrários é o
desarranjo produzido pelos contrastes gritantes entre a pobreza e a
riqueza que, à revelia da vontade pessoal, conviviam sempre juntas. O
rapaz vivia pelas quebradas mesmo depois da fama, fazia jus ao apelido
que carregava (Daleste surgiu como ênfase do lugar de origem, isto é,
“da zona leste”), e nos diversos vídeos espalhados pelo
youtube
não há como desconsiderar o estranhamento e a faísca que o luxo e a
precariedade, em constante interação visual, são capazes de produzir.
A
variedade de estilos que explorou, em consonância à complexidade de sua
própria personalidade, faz de Daleste uma espécie de condensação de
tipos sociais profundamente representativos das periferias dos grandes
centros urbanos.
No filme
Bróder (Jeferson De, 2010), a
título de exemplo, havia três grandes amigos representantes dos caminhos
que se oferecem aos jovens pobres da cidade grande: Macu (Caio Blat)
interpretava um jovem ligado ao crime; Jaiminho (Jonathan Haagensen) era
o jogador de futebol, ídolo na comunidade e símbolo da ascensão social;
enquanto Pibe (Sílvio Guindane)
representava o trabalhador comum, homem de família, conformado às regras sociais e aos limites colocados pelo destino.
Os
três formavam assim o elo de um universo fechado em diferentes níveis. E
eles podem claramente servir para compreendermos Daleste que, em quatro
anos de carreira, conseguiu ser um pouco de cada uma dessas personagens
sem deixar de ser ele próprio.
É verdade, porém, que todo seu
talento e fama tornaram-se irrelevantes à objetividade específica dos
cálculos estatísticos que computam, na última década, o crescimento
incisivo do número de jovens negros vítimas de homicídio no Brasil. Sua
morte figura apenas como mais uma entre as inúmeras tragédias que se
repetem diariamente em nosso país.
E independente se foi crime
passional, cobrança de dívida, rivalidade ou ação de grupos de
extermínio, o fato mesmo é que o menino não mais voltará a pisar nos
palcos para encantar o povo pobre da periferia. Embora agindo por algum
tempo como anfitrião, o ‘mundo cão’ parece mesmo ter conspirado contra
Daleste.
* Christian Gilioti é professor de filosofia
no ensino médio e mestrando em filosofia na FFLCH-USP. Pesquisa as
formas artísticas de parte do cinema nacional da última década e suas
imbricações com a cultura e a política contemporâneas.
Fonte: Brasil de Fato.