Um dos pensadores mais polêmicos da atualidade,
o filósofo esloveno diz que a sociedade digital é dominada por
empresas e que nela não há democracia
O filósofo
esloveno Slavoj Zizek escolheu um lugar inusitado para gravar a
entrevista para um documentário em São Paulo. Enquanto os produtores
debatiam, Zizek sugeriu: “Por que não fazem a entrevista comigo sentado
numa privada? Dizem que eu falo muita m..., então é o lugar ideal!”. O
episódio resume o espírito de seu protagonista: é um provocador que sabe
manipular as aparências. Profundo e às vezes até incompreensível em
seus textos, Zizek recorre com frequência a temas pop para explicar suas
convicções. “Kung Fu Panda, por exemplo, tem toda aquela ideologia de
kung fu por trás, mas é emblemático de nossa sociedade: tudo se resume à
luta e à comida”, diz ele. O polemista admite que, às vezes, é
provocador: “Eu gosto de complicar as coisas”. No Brasil para uma série
de palestras e o lançamento de dois livros, Zizek recebeu ÉPOCA no
saguão de um hotel de luxo em Copacabana, de frente para o mar. De jeans
e camiseta, bem-humorado, afirmou que não existe sociedade
completamente livre, defendeu um debate sobre o modelo econômico mundial
e chamou o diretor David Lynch de idiota.
ÉPOCA – O senhor tem
criticado a nova tendência de armazenar as informações em grandes
computadores externos (as “nuvens”), e não mais nos computadores
pessoais. Isso não é paranoia?
Slavoj Zizek –
Não é para transformar em paranoia, mas é um perigo. O que eu digo é
que pensamos na internet como um espaço público e aberto, mas ela não é
isso. É um espaço privado. Gostamos de dizer que nosso uso da internet é aberto, em contraste, por exemplo, com o que é feito na China.
ÉPOCA – Mas qualquer um pode abrir um site, escrever o que quiser...
Zizek –
E isso sempre estará vinculado a alguma empresa. É uma falsa ilusão de
espaço público. É mais ou menos como um shopping: é público, mas existe
exclusão. O espaço é controlado por uma empresa, está dentro de uma
cúpula, controlado.
ÉPOCA – Então não somos livres?
Zizek –
Tudo é permitido, mas nem tanto. Recentemente, na China, eles proibiram
na TV histórias que tivessem viagens no tempo e realidades
alternativas. A explicação oficial é que a história é uma coisa muito
séria para ser submetida a esse tipo de ficção. Na verdade, eles têm
medo de que as pessoas possam simplesmente pensar que a realidade
poderia ser diferente. Aqui não temos esse tipo de controle, mas existem
áreas onde não é possível pensar em realidades diferentes.
ÉPOCA – Quais?
Zizek –
Nós achamos que quase tudo é possível na tecnologia. Viajar pelo
espaço, clonar, fazer crescer órgãos, usar células-tronco. Mas, na
economia, se você propuser qualquer alternativa, eles dizem: “Não! É
impossível. Você não pode nem pensar nisso”. Até a esquerda aceita que a
receita liberal, do jeito que é, está certa.
ÉPOCA – Isso não é um paradoxo, já que temos informações de todas as partes do mundo, ainda mais com a internet?
Zizek –
Um exemplo: como a imprensa trata a questão do Oriente Médio? A
imprensa vai lá quando algo está acontecendo. O ideal seria saber o que
acontece lá quando nada está acontecendo. Como é a vida quando nada que
interessa à mídia está acontecendo. Aí é que estará o verdadeiro horror.
De repente, do nada, ocorre algo e a mídia vai correndo e todos se
perguntam: “Por que aconteceu isso?”. Não deveríamos ser tão fascinados
apenas pelo que está acontecendo. Olhe o que está por trás, o que
acontece quando nada acontece.
ÉPOCA – A democracia e a liberdade de escolha nos protegem?
Zizek –
A democracia funciona assim: é um pacto secreto entre as pessoas e a
elite. As pessoas não querem decidir de verdade. Eles querem que alguém
diga o que fazer, mas querem manter a aparência de que estão decidindo.
Toda pessoa tem medo de decidir. É difícil ser realmente livre e
decidir. É um pesadelo. Quer dizer que você tem de assumir completamente
a responsabilidade.
"Nós achamos que quase tudo é possível
na tecnologia. Mas, na economia,
se você propuser qualquer alternativa,
eles dizem que é impossível"
PRODUÇÃO
Dois livros de Zizek lançados no Brasil.
Ele analisa a cultura contemporânea
ÉPOCA – O senhor já
provocou polêmica ao dizer que Hitler não foi violento o suficiente.
Acha que a liberdade é poder dizer coisas assim?
Zizek –
Admito que eu gosto de provocar, mas não disse isso no sentido literal.
As pessoas quase tiveram um ataque do coração quando eu disse que o
problema de Hitler é que ele não foi violento o suficiente. Meu ponto é
simples: Gandhi foi mais violento do que Hitler. A verdadeira violência é
a violência da mudança social. Hitler fez o que fez para evitar uma
mudança social. Nesse sentido, ele foi basicamente um covarde, mesmo
tendo matado milhões.
ÉPOCA – O que o senhor acha das críticas a Lars Von Triers, que disse que entendia Hitler?
Zizek –
Não devemos ser livres para celebrar Hitler, nada disso. Claro que
Hitler fez coisas horríveis. No caso de Lars tem outra questão: o
artista deve ser julgado pelo que ele faz. Eu odeio essa ideia de que,
se você conversar com um diretor ou com um autor, você vai descobrir
algo incrível, algum segredo. O que eles sabem está no que eles
produzem. Muitos deles são idiotas. David Lynch, francamente, é um
idiota. Ele está agora numa empreitada para coletar milhões de dólares
para construir uma imensa cúpula de meditação porque ele acha que se
mais de dez pessoas meditarem num lugar isso vai liberar energia que vai
trazer paz ao mundo. Mas nos filmes ele é um gênio.
ÉPOCA – O senhor também já tentou resgatar reputações como a de Lênin e Robespierre. Por que defender figuras tão controversas?
Zizek –
Eu disse claramente: Lênin está morto, o comunismo do século XX é
passado, foi um fracasso. Eu apenas tentei entender a tragédia do
comunismo. Uma imensa onda de liberdade e emancipação explodiu e
terminou como um terror impensável. Estamos cientes do que a revolução
de outubro trouxe em termos de emancipação, de liberdade. Falo da
revolução em si. O que veio depois, veio depois. Eu não aceito a forma
como algumas figuras são pintadas.
ÉPOCA – O que acha de Bin Laden?
Zizek –
Lênin, Bin Laden, onde você vê conexão? É o oposto. Como Bin Laden
veio? Bin Laden era como um agente da CIA. Os Estados Unidos criaram Bin
Laden. O Afeganistão era o mais tolerante dos países do Oriente Médio.
Tinha uma tradição de tolerância religiosa. Havia muçulmanos, budistas,
inclusive visitavam uns aos outros. Para lutar contra os comunistas, os
Estados Unidos se uniram aos fundamentalistas. Olhe para os Estados
Unidos. O sistema deles gerou o fundamentalismo.
SLAVOJ ZIZEK
QUEM É
Slavoj Zizek, de 62 anos, é filósofo e crítico esloveno O QUE FEZ
É autor de vários livros. Considera sua obra-prima A visão em paralaxe, sobre o deslocamento aparente de um objeto, quando, na verdade, quem mudou de posição foi o observador
O QUE PUBLICOU
Está no Brasil para lançar os livros Primeiro como tragédia, depois como farsa e Em defesa das causas perdidas, ambos pela editora Boitempo
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