O Rato Que Tem Medo
domingo, 28 de abril de 2013
Quando de meus bons tempos de escola - e
digo como aluno, obviamente -, não havia a esdrúxula e inútil figura do
coordenador pedagógico.
As escolas eram regidas, e muito bem
regidas, pelos diretores - bons diretores -, pelos inspetores - bons
inspetores - e pelos professores - bons professores em sua maioria,
outros nem tanto, mas todos muito bem pagos, o que logo de cara já lhes
conferia o respeito da população, que, inculta, só respeita quem ganha
bem.
Saí da escola em 1984, por conta da
conclusão de meu Segundo Grau, sem conhecer a figura do coordenador
pedagógico. Só comecei a ter o desprazer de conhecê-la - e jamais pude,
na época, imaginar o grau de desprazer a que isso chegaria - exatos dez
anos depois, quando, sabe-se lá por quais manobras do Destino, esse
velho safado, peguei-me novamente em sala de aula, como professor,
então.
A pessoa se apresentou a mim como tal,
toda educada, cortês, boazinha e afável - todo canalha é educado,
cortês, bonzinho e afável -, disse-me de suas funções de coordenadora
para comigo e me deu até um papelzinho com suas atribuições por escrito
: I - acompanhar e avaliar o
ensino e o processo de aprendizagem,
bem como os resultados do desempenho dos alunos;II - atuar no sentido de tornar as ações de coordenação
pedagógica espaço coletivo de construção permanente da prática
docente;
III - assumir o trabalho de formação continuada, a partir do diagnóstico dos saberes dos professores para garantir situações de estudo e de reflexão sobre a prática pedagógica, estimulando os professores a investirem em seu desenvolvimento profissional; IV - assegurar a participação ativa de todos os professores do segmento/nível objeto da coordenação, garantindo a realização de um trabalho produtivo e integrador;
V - organizar e selecionar materiais adequados às diferentes situações de ensino e de aprendizagem;
VI - conhecer os recentes referenciais teóricos relativos aos processos de ensino e aprendizagem, para orientar os professores; VII - divulgar práticas inovadoras, incentivando o uso dos recursos tecnológicos disponíveis.
III - assumir o trabalho de formação continuada, a partir do diagnóstico dos saberes dos professores para garantir situações de estudo e de reflexão sobre a prática pedagógica, estimulando os professores a investirem em seu desenvolvimento profissional; IV - assegurar a participação ativa de todos os professores do segmento/nível objeto da coordenação, garantindo a realização de um trabalho produtivo e integrador;
V - organizar e selecionar materiais adequados às diferentes situações de ensino e de aprendizagem;
VI - conhecer os recentes referenciais teóricos relativos aos processos de ensino e aprendizagem, para orientar os professores; VII - divulgar práticas inovadoras, incentivando o uso dos recursos tecnológicos disponíveis.
Nunca
entendi patavina do idioma pedagogês, e nunca fiz questão de, e nunca
farei. Mas me pareceu que o tal professor coordenador fosse um aliado
do docente, um amigo a ocupar um escalão mais alto dentro do território
cada vez mais hostil em que se transformava a escola pública pós-ECA e
pós-Progressão Continuada.
Mera
ilusão de minha parte. Ingenuidade da mais vergonhosa, devo admitir.
Nunca, nunca tive nenhum coordenador que desempenhasse minimamente o
papel de aliado do docente. Todos, sem única exceção, ou por comodismo,
ou por conveniência, ou por incompetência, ou pelos três motivos, uma
vez que todo incompetente é conveniente acomodado, resumiram suas
funções a uma única : vigiar o professor, e humilhá-lo sempre que
possível.
O
professor coordenador nada faz de pedagógico, ele é uma espécie de
capitão do mato dos antigos senhores de escravos, e os escravos,
desnecessário dizer, são os professores. Pior : o professor coordenador é
aquele escravo que foi levado para mais perto de seu amo e senhor, é o
escravo que foi levado a trabalhar dentro da Casa Grande, continua o
mesmo bosta de escravo, mas a proximidade com quem detém o poder, com a
mão que empunha o chicote, o faz se pensar também depositário desse
poder.
O
dono do chicote, vez ou outra, empresta o açoite ao coordenador, e ele
se regozija, usa-o com enorme destreza contra quem era seu igual até
ontem, chicoteia o escravo com mais prazer ainda que o próprio dono,
como se chicoteasse sua própria condição anterior de escravo das
senzalas, para afugentar de vez essa situação, para impedir a todo custo
seu retorno a ela. O professor coordenador se esforça em mostrar que
gosta menos dos escravos que o próprio senhor de escravos, para que o
amo nunca o mande de volta à senzala, para que o mantenha sempre a
lamber suas botas e seu saco.
Isso
acontece porque os professores coordenadores foram um dia professores
dos mais incapazes, professores totalmente incompetentes no domínio de
uma sala de aula, seja por falta de conteúdo, seja por falta de pulso
firme, de postura, ou o que seja. Os professores coordenadores são
professores frustrados. Feito um crítico musical que desanca um bom
disco, sem nunca, ele próprio, ter conseguido compor única melodia, por
pura inveja; ou um crítico de cinema a dar uma só estrela a um filme,
sem nunca ter conseguido escrever único roteiro, ou rodar única
película.
O
professor coordenador vê um bom professor e se irrita, morre de inveja
da capacidade desse, capacidade que ele, um dia, quis ou julgou ter, mas
descobriu-se um sem talento. Então, geralmente amigo de algum diretor
ou de outro coordenador, ajeita uma mamata e se autopromove a
coordenador. Daí para frente, lenha em quem tem o talento que ele não
tem. Não à toa os professores coordenadores vivem a dizer que os
professores não sabem avaliar, não sabem preparar aulas, não sabem isso,
não sabem aquilo. Estão dizendo de si próprios, os canalhas, os
traidores.
E
uma ou duas vezes por semana, os coordenadores põem no tronco e
chicoteiam seus professores, a sessão chibata ocorre nos tais HTPCs,
reuniões de cunho falsamente pedagógico. Os HTPCs são os momentos em que
o professor fica sabendo que todos os males da escola, quiçá do mundo,
são de sua culpa e responsabilidade, são os momentos em que o professor é
reduzido a menos que a merda do cavalo do bandido de filmes de
faroeste.
Nos
HTPCs, os coordenadores despejam todas as suas frustrações sobre o
professor, despejam, como bem diria Lobão, a sua ira da frustração de
não ter o próprio pau ereto. Grande Lobão.
E
por que o governo coloca esse tipo de gente a liderar os professores? Um
frustrado e incapaz não seria a pior espécie de lider possível? Claro
que sim. Mas quem disse que o governo quer líderes para seus
professores? Ele quer é vigias, punidores. E aí, o frustrado é a escolha
perfeita.
O
frustrado, imbuído de um pequeno poder, não lidera, apenas manda. Ele
tem um poder circunstancial, o chicote emprestado, como bem diz o texto
que logo reproduzirei.
Hoje,
porém, vivemos tempos de politicamente correto, e a humilhação pública
do professor não pode ser muito direta, muito contundente, ela tem que
ser mais polida, mais subjetiva, mais canalha ainda. E para isso, para
humilhar polidamente o professor, os coordenadores adoram se utilizar de
pequenos textos, de pequenas fábulas com moral da história, usam-nas o
tempo todo para mandar suas indiretas ao professor, suas farpas. Rubem
Alves, Paulo Coelho, Gabriel Chalita, Paulo Freire etc são os autores
que mais auxiliam o coordenador em seu açoitamento pedagógico.
Usando
as mesmas armas que eles, reproduzirei - finalmente - um texto que
trata muito bem dessa questão do chefe incapaz, que manda sem liderar;
ao fim do texto, fechando-o com chave de ouro, escrita pelo genial e imortal
Millôr Fernandes, uma fábula moderna, O Rato Que Tem Medo.
A fábula se encaixa perfeitamente aos professores coordenadores de todo esse nosso Brasil, que já foi mais varonil.
"Um dos fundadores da sociologia, o economista alemão Max Weber,
conceitua o poder como sendo toda a probabilidade de impor a própria
vontade numa relação social, obstante qualquer resistência e
independentemente do fundamento dessa probabilidade.
Um dos exemplos mais simplórios e também um dos mais anacrônicos do
exercício do poder está manifestado no membro administrativo de algumas
corporações, com grau hierárquico executivo identificado simplesmente
como “o chefe”.
“O chefe” é o personagem muitas vezes caricato que, encarnando o
detentor de alguma forma de poder, tem muitas vezes seu grau de
hierarquia oficializado por títulos sugestivos, tais como coordenador,
gerente, diretor, supervisor, etc.
Independentemente do título, ser chefe é ter acesso privilegiado às
informações e às decisões, e também a outros instrumentos
administrativos que viabilizam o exercício desse poder, tais como a
promoção e a demissão de seus subordinados, por exemplo.
No Brasil das corporações anacrônicas é comum se ouvir nos bastidores:
- O chefe tem sempre razão!
- Manda quem pode – e obedece quem tem juízo!
E por aí vai.
A infelicidade de tal prática, onde chefe é chefe e subordinado é
subordinado (sendo a diferença muito nítida também no montante dos
salários) geralmente está acompanhada pelo autoritarismo de uma parte e a
subserviência da outra.
Talvez uma herança atávica do feudalismo, o exercício do micro poder
diário das chefias nos convida a um questionamento filosófico também
sobre o exercício diário da ética, que se traduz, na interpretação de
muitos filósofos modernos, como sendo simplesmente o exercício da moral.
Muitos chefes possuem um poder circunstancial. Mandam mas não
lideram.
E talvez por falta dessa mesma liderança ameacem, intimidem e se
transmigrem amiúde na versão tragicômica de pequenos tiranos.
Em síntese: um rato que ruge.
E o que é pior, é que muitos desses chefes tiranos brotaram do plano
comum de seus subordinados.
Quando então promovidos simplesmente “mudam de lado”.
Talvez porque na maioria das corporações onde exista um chefe tirano,
também existam subordinados que trabalhem direito apenas quando contam
com uma “severa” supervisão.
Flagra-se, portanto, a carência de moral, tanto de uma parte como de
outra.
Qual é a solução?
Melhorando-se o subordinado, transformando-o em colaborador se
melhoraria também a chefia?
Ou trocando-se um chefe por um verdadeiro líder, a coisa toda mudaria
de figura?
Será?
Ou é do indivíduo que temos de falar – antes de mais nada?
Para concluir este artigo e suscitar essa fabulosa reflexão – quero
apresentar aqui minha releitura recorrente de uma das “Fábulas
Fabulosas” de Millôr Fernandes:
“O rato que tem medo”
A história é bem simples. Um rato que depois de muito sofrer pede
para um grande mágico transformá-lo em um gato. Não suportava mais ser
perseguido e intimidado.
Nem bem foi transformado, ironicamente, passou a perseguir todos os
ratos que encontrou. Porém, com inédita crueldade e efetiva precisão.
Afinal conhecia com propriedade o modus operandi destrutivo dos
ratos.
Viveu satisfeito até encontrar um cão – que então o persegue.
Implora mais uma vez para que mágico o transforme, dessa vez em um
cão, e assim, por efeito da magia vai subindo sucessivamente a escala
zoológica até chegar na iminência de ser transformado em ser humano.
Nessa passagem, o mágico, numa peripécia o transforma novamente num
rato.
- Mas por que voltei a ser rato? – pergunta o animal, transbordando
frustração.
É com a sabedoria típica das fábulas que o Grande Mágico responde:
- De que adiantaria para o mundo mais um Homem com “coração de rato”!
Retirei o texto do excelente blog Hypescience. Desafio qualquer professor coordenador a se utilizar dessa fábula de Millôr em seus HTPCs.
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